Em praça, locomotiva junta lixo e ratos e é exemplo claro do abandono ferroviário
A locomotiva alemã que foi transportada de Ribeirão Preto para Campinas no último sábado (18) para ser totalmente restaurada é apenas o exemplo mais recente do que é a falta de preservação da memória ferroviária no país.
Ribeirão é uma cidade que cresceu devido à ferrovia: desenvolveu sua economia a partir da segunda metade do século 19 com as suas grandes lavouras de café, que utilizaram os trilhos principalmente da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro para transportar o produto até o porto de Santos.
Com isso, surgiram barões do café como Henrique Dumont (1832-1892), pai do aviador Alberto Santos Dumont (1873-1932), e Francisco Schmidt (1850-1924), que dá nome à praça em que a locomotiva alemã Borsig fabricada em 1912 estava exposta e foi alvo de furtos de peças de cobre, ferro e aço nos últimos 47 anos.
Do legado ferroviário que a transformou em uma potência econômica no país pouco resta. A antiga estação foi demolida em 1967 e deu lugar ao que hoje é uma unidade de saúde. Há restos de trilhos de ramais inoperantes espalhados pela cidade, como na zona norte e no entorno da Cidade Universitária.
Além disso, outra estação da Mogiana, a Silveira do Val, está abandonada na zona rural, próxima à fazenda que abriga anualmente a Agrishow (Feira Internacional de Tecnologia Agrícola em Ação), com suas potentes colheitadeiras e implementos para alavancar a produção no campo.
Ribeirão Preto teve ainda trilhos que atenderam outras companhias ferroviárias, como a São Paulo-Minas, cuja estação ainda existe, mas está descaracterizada.
Uma outra locomotiva, que também sofre ações de vandalismo, está exposta na área da atual estação ferroviária da cidade, na avenida Mogiana, mas quase a cidade a perdeu há pouco mais de dois anos.
Ela estava sobre um caminhão para ser transportada para Salto para fazer parte do consórcio Trem Republicano, mas ações de órgãos de preservação e da prefeitura conseguiram barrar a transferência.
A locomotiva que agora será restaurada em Campinas pertenceu à Usina Amália, foi doada ao município de Ribeirão pelas Indústrias Matarazzo e é o primeiro bem ferroviário a ser recuperado na cidade, o que é visto pelo Instituto do Trem como um fato importante para tentar avançar nas ações locais de preservação.
“Tivemos reunião hoje [terça, 21] no Ministério Público Federal para tratar da viabilização do museu ferroviário e foi promissora. É preciso chamar atenção da população para a necessidade de preservação”, disse Denis Esteves, presidente do instituto.
Embora veja com otimismo o cenário, recuperar a locomotiva enviada para Campinas será um dos maiores desafios da ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária), segundo Helio Gazetta Filho, diretor administrativo da associação.
“O estado dela é lamentável, não conseguíamos chegar perto, de tão forte que era o cheiro de urina. E ela estava cercada de usuários de drogas”, disse.
Segundo ele, só da fornalha do trem foram retirados 10 cobertores utilizados por moradores de rua. Uma desinfecção com cloro e produtos à base de eucalipto tentou reduzir o mau cheiro, que persistiu nos dias seguintes.
Também foi necessário abrir um buraco com maçarico para que os ratos que habitavam o local fossem retirados.
“O mais próximo disso que vi foi em Guajará-Mirim [RO], da [ferrovia] Madeira-Mamoré. A locomotiva foi colocada voltada para a Bolívia, num pedestal, ao lado de um bar. O local virou banheiro do bar”, disse o diretor.
Apesar disso, Gazetta Filho afirmou ser possível recuperar a locomotiva integralmente. “Não foi exigido no edital que ela funcionasse, mas vamos deixá-la pronta como se fosse operar”, afirmou.
A restauração, que custará R$ 749 mil à prefeitura, está incluída num pacote de R$ 75 milhões de uma operação de crédito entre a prefeitura e o Banco do Brasil, assinado em setembro do ano passado e que inclui recuperação de prédios públicos e obras de mobilidade urbana.
Embora o cenário histórico de Ribeirão não contemple a preservação de bens ferroviários como prioridade, ela não é caso único no interior de São Paulo. Neste mês, um incêndio destruiu um vagão em Botucatu, que era alvo de uma associação de preservação. Foi o segundo veículo que ela deixou de amealhar para seu acervo em sete meses –o primeiro também foi incendiado.