Associação desenterra trecho de ferrovia no interior para criar rota entre SP e MG
O desmanche do patrimônio ferroviário em São Paulo foi marcado pela retirada de trilhos no interior do estado na década de 80 e pelos constantes furtos registrados após a paralisação dos trens em alguns trechos, o que fez o abandono predominar nas linhas férreas.
Mas também foi marcado, acredite, pelo enterro de trilhos para dar outra destinação ao espaço que um dia transportou cargas e passageiros. Foi o que aconteceu em Cruzeiro (a 219 km de São Paulo), onde um trecho ferroviário está sendo desenterrado por uma associação de preservação para a criação de uma rota de trem entre São Paulo e Minas Gerais.
O trabalho está sendo feito pela ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária) e consiste no renascimento de ao menos 300 m de trilhos que estão enterrados na cidade, numa operação praticamente manual, para evitar danos ainda maiores à linha.
“[A prefeitura] Jogou terra em cima dos trilhos no passado para fazer um estacionamento no local. Quando isso ocorreu, queriam que a associação retirasse os trilhos, mas não aceitamos. A que está sendo desenterrada é a linha principal. Nos recusamos a tirar, foi uma questão de posicionamento mesmo. Estamos desenterrando o que nunca deveria ter sido enterrado”, disse Bruno Crivelari Sanches, presidente da ABPF.
O ressurgimento dos trilhos, com aval da atual administração da cidade, é importante para que prossiga o trabalho de reconstrução de um trecho de 24 quilômetros de ferrovia ligando a cidade paulista a Passa Quatro (MG), passando pelo túnel Grande, de 998 m, na divisa entre os estados.
Na cidade paulista, há duas linhas que serão operacionais. Uma é conexão com a concessionária de cargas MRS e a outra é a principal, que está sendo recuperada.
“Com tanta coisa para ser feita no local, a opção foi pela pior, que foi usar o espaço como estacionamento, o que estimula o uso de automóveis, na contramão do que deve ocorrer. Poderia também ser uma área verde, preservando a ferrovia, mas nada disso ocorreu”, disse.
De acordo com o presidente, os trilhos estão intactos e até mesmo os dormentes estão em bom estado, mas serão trocados por outros comprados pela associação para a recuperação de todo o trecho.
O primeiro lote de dormentes, com 320 unidades, chegou em junho do ano passado, para ser usado na recuperação entre as estações Cruzeiro e Rufino de Almeida, ambas no lado paulista da ferrovia.
É a primeira fase do projeto, composta por seis quilômetros e considerada a mais bonita e complexa da antiga Estrada de Ferro Minas e Rio. O trecho, plano, corta toda a cidade, até chegar à estação, onde começa a subida da Serra da Mantiqueira.
Os dormentes, todos usados, foram comprados do Maranhão e escolhidos por serem de madeira de mais qualidade que o eucalipto –que tem vida útil mais curta. Em média, cada peça custou R$ 90. São necessários 5.000 –a associação já tinha estoque.
A HISTÓRICA ROTA
O projeto integral contempla a recuperação de 25 quilômetros, incluindo pátios para manobra, até o túnel que separa os dois estados mais populosos do país.
O túnel Grande divide Cruzeiro de Passa Quatro e foi um local de relevância histórica durante a Revolução Constitucionalista de 1932. A região da estação ferroviária Coronel Fulgêncio, em Passa Quatro, ainda guarda marcas dos confrontos.
Do lado mineiro, a região da linha férrea, que hoje abriga uma rota ferroviária turística, foi cenário de uma batalha sangrenta entre as forças paulistas e as tropas federais.
Relatos de pesquisadores indicam centenas de mortes de combatentes no local, inclusive a do tenente-coronel Fulgêncio de Souza Santos, comandante do 7º Batalhão da Força Pública de Minas Gerais.
Os registros indicam que ele foi assassinado perto do túnel quando paulistas tentaram invadir Passa Quatro.
Fulgêncio empresta o nome a uma estação ferroviária na cidade mineira e também, desde 1985, a uma medalha do mérito entregue pela Polícia Militar mineira para homenagear integrantes da PM, instituições e personalidades que prestaram serviços relevantes.
SEM PRAZO
Os recursos para a implantação do trecho entre os dois estados são obtidos com a bilheteria dos trens operados pela regional Sul de Minas da associação, em São Lourenço e Passa Quatro (ambas em Minas Gerais) e Guararema (SP). Não há recursos públicos.
“Ao refazer a ligação até o túnel, a gente conecta os trilhos com o trecho de 10 quilômetros que já funciona em Passa Quatro. O empenho é para nunca parar a obra, mas agora o ritmo está lento por não estarmos operando as rotas, devido à pandemia”, disse Sanches. O novo coronavírus paralisou totalmente as operações ferroviárias turísticas no país.
O chamado trem da Serra da Mantiqueira é oferecido em Passa Quatro desde 2004, quando a ABPF assumiu o trecho e a estação ferroviária em Minas. Ele parte da estação central da cidade, que pertenceu à ferrovia Minas e Rio, passa pela estação Manacá, em operação desde 1931, e vai até Coronel Fulgêncio, num percurso de 20 quilômetros (ida e volta), no alto da serra, feito em duas horas.
O local é muito utilizado também por ciclistas que percorrem a Estrada Real. Surgida no Brasil Império para escoar os minérios extraídos do solo mineiro para o litoral do Rio de Janeiro, ela tem 710 quilômetros de extensão em seu caminho pioneiro e passa por cidades como São João del-Rei, Tiradentes e Passa Quatro.