Guia reconta trajetória de trens há exatos 100 anos em cidades do interior paulista
Um guia de 40 páginas, que possivelmente pertenceu a algum chefe de estação da extinta Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, mostra como era o trajeto ferroviário há exatos 100 anos em cidades do interior de São Paulo.
Embora não seja inédito –há documentos do gênero em locais como o Arquivo do Estado e museus–, a publicação, intitulada “Companhia Mogyana de Estradas de Ferro e Navegação – Horário”, apresenta dados preciosos sobre o dia a dia da operação dos trens, que percorriam cerca de 2.000 quilômetros de trilhos em São Paulo e Minas Gerais.
Com data de 19 de setembro de 1920, a publicação leva os nomes de dois ex-funcionários graduados da Mogiana, Jayme de Castro Barbosa, chefe de tráfego, e Carlos Stevenson, inspetor geral, e caiu nas mãos do servidor público federal Mario Favareto, 52, após aquisição num sebo virtual. E não foi o único documento raro ligado às ferrovias garimpado por ele.
Confeccionado em capa dura e couro, o livro é separado por rotas, como a que ligava Campinas a Ribeirão Preto, duas das mais importantes cidades do interior paulista, ou Ribeirão a Uberaba (MG), via Franca.
“O que amigos me contaram é que provavelmente pertenceu mesmo a algum chefe de estação, era um documento com informações completas da ferrovia. Alguém chegava lá e ele tinha de ter tudo detalhado para orientar as pessoas”, disse.
Amante da memória ferroviária, quando criança viajava com a família em trens da Companhia Paulista e começou a juntar material sobre o assunto. Já adulto, utilizou filmes da época e criou um DVD para presentear os pais e lembrá-los como eram as viagens que eles faziam.
Mas, além de todo o itinerário e cidades atendidas pela companhia ferroviária, a publicação também exibia informações sobre a existência ou não de vagão restaurante e até qual cidade ele percorria os trilhos, eventuais pausas para jantar e sua duração (normalmente de 20 a 25 minutos), horário de conexão com ramais atendidos pela Paulista e apresentava a altitude em que todas as estações se encontravam.
Enquanto a de Ribeirão Preto estava 517 m acima do nível do mar, em Pedregulho, 144 quilômetros depois, na Linha do Rio Grande, a estação ficava a 1.031 m.
COMO ERA
Ocupando duas páginas do guia, a rota Campinas-Ribeirão tem descrição de estações, quilometragem e horários de chegadas e partidas. Mostra, por exemplo, que a distância percorrida entre as estações principais da Mogiana nas duas cidades era de 317 quilômetros. Hoje, pela rodovia Anhanguera, esse trajeto é de pouco mais de 220 quilômetros.
A diferença é explicada principalmente pelo fato de os trens da Mogiana terem ficado conhecidos como “cata-café”, por terem traçado que passava pelas grandes fazendas de café que existiam entre as últimas décadas do século 19 e as primeiras décadas do século passado.
Isso não é exclusividade da Mogiana, já que a maioria das ferrovias paulistas foram construídas com capital levantado nas próprias regiões de atuação, bancadas especialmente pelos barões do café.
Eram exatas 50 estações entre as duas cidades, numa viagem que, se não houvesse atraso –o que era comum à época–, seria feita em pouco mais de nove horas. Sim, nove horas, passando por estações como Oriçanga e Estiva Gerbi.
Também detalha a operação de ramais como os de Amparo, Socorro, Serra Negra, Itapira, Mococa, Guaxupé (MG), Sertãozinho, Cajuru e Cravinhos, entre outros.
No de Mococa, o trem que percorria toda a sua extensão partia de Casa Branca às 13h05 e tinha previsão de chegada para as 15h27, num trecho de 72 quilômetros entre as 12 estações.
RARIDADE
O histórico guia deverá ser doado no futuro à ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária), entidade à qual o servidor público é associado há 14 anos.
Mas, além da publicação da Mogiana, Favareto adquiriu, em outra oportunidade, uma série de relatórios de administração da Companhia Paulista por R$ 50. Também pela internet. “O cara que vendeu disse que iria para o lixo, imagine.”
Esse material foi cedido por ele ao pesquisador Ralph Mennucci Giesbrecht, que há mais de 20 anos atua na preservação da memória ferroviária e é autor de livros sobre o setor, como “Um Dia o Trem Passou por Aqui” (Studio4, 2001).