Invasor loteia para amigos complexo ferroviário na antiga São Paulo-Minas
O local é de difícil acesso, não tem sinalização e, para alcança-lo, é preciso percorrer cerca de 15 quilômetros em estradas de terra, algumas em mau estado. Também não tem energia elétrica e a água só chegou após uma ligação de mais de um quilômetro de extensão ser feita com o vizinho mais próximo.
Isso tudo, porém, não impediu que o complexo ferroviário e a estação Águas Virtuosas, em Altinópolis (a 343 km de São Paulo) fossem invadidos há 18 anos por uma família. O líder da ocupação, que se considera uma espécie de síndico do local, “loteou” com amigos as moradias da vila, que passaram a ser usadas como casas de campo.
A reportagem percorreu 2.000 quilômetros de estradas, parte deles em vias de terra, em busca de estações “perdidas” por descaso, ou em locais hoje de difícil acesso, que pertenceram às companhias Paulista, Mogiana, Sorocabana, Araraquara e São Paulo-Minas, que originaram a Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.), em 1971.
O cenário geral é de abandono e depredação. Houve casos em que a reportagem dirigiu 15 quilômetros em estradas de terra para chegar às estações, às vezes até sem energia elétrica, mas mesmo assim alvo de invasões e de depreciação do patrimônio público.
A história da Águas Virtuosas remonta a 1910, quando foi inaugurada pela Estrada de Ferro São Paulo-Minas, com o objetivo de transportar café das lavouras da região. Ela fica a 30 quilômetros da estação urbana de Altinópolis e a 13 quilômetros da já demolida estação Ipaúna, em Serrana, conforme mapa de 1970 do extinto DNEF (Departamento Nacional de Estradas de Ferro).
Até por ficar num local ermo, o local demorou para ser invadido, na avaliação de especialistas em preservação. Com isso, cinco casas que fazem parte do complexo estão em pé, assim como a moradia do chefe, uma hospedaria, a caixa d’água, a estação e uma casa de máquinas –que hoje abriga um gerador a diesel.
Também há alguns pedaços de trilhos, que o “síndico” Fabricio Cesar Furtado, 38, enterrou para evitar que fossem furtados. Dormentes e ferragens usadas na SPM, como a ferrovia era conhecida, também estão na propriedade, que ainda conta com inscrições alusivas à companhia ferroviária e à Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.), que a sucedeu.
Ele, que é de Ribeirão Preto, e o pai –falecido– chegaram ao local no ano 2000, após indicação de um amigo que conhecia o local.
“Era tudo mato, tudo abandonado, nós viemos e pegamos. Não somos bobos, moramos em Ribeirão Preto e sabemos que lá tem favela na beira da linha. Se lá está abandonado e invadiram, aqui também [poderia ser]”, afirmou ele, que mora na estação com a mulher, Yanka, e os filhos Marcos, 2, e Thaila, 7.
Após reformar alguns imóveis e colocar telhados e janelas, resolveu doar a amigos casas da vila, que hoje são usadas como casas de veraneio. Quando a Folha esteve lá, encontrou latas de cerveja e garrafas vazias de uísque num dos imóveis.
Para Furtado, assim os amigos ajudam a preservar o local de outros invasores. Ele também contratou um caseiro, que iniciou os trabalhos no dia anterior à ida da reportagem ao local. “Já apareceu gente dizendo que ‘ia pegar uma casa’. Aqui não, não é assim”, disse.
Embora tenha um pequeno negócio em Ribeirão Preto, o invasor disse que seu endereço residencial é a estação e que pretende recuperar o complexo, inclusive com a construção de uma espécie de bar, para atender ciclistas e motociclistas que todas as semanas passam pelo trecho.
Parte interna da estação está sem telhado e o lado externo tem danos e peças furtadas. Sem vidros, só restam as ferragens em janelas e uma das casas loteadas foi atingida por um incêndio, de causa desconhecida, conforme Furtado.
Questionado se tem medo de perder a vila ferroviária, afirmou que não, por ser um guardião do legado da SPM.
“Medo de perder? Não, mas vou brigar bem [se isso ocorrer]. Não era nem para ter parede em pé. Se está em pé é porque eu segurei até hoje. Os outros vêm, querem por bombinha, dar tiro na parede. Se ainda tem algumas coisas é porque a gente está tomando conta e cuidando. Não é meu, mas para eu sair da noite para o dia vai dar briga”, disse.
Nos últimos 18 anos, de acordo com o invasor, não apareceu uma pessoa sequer ligada à administração da antiga São Paulo-Minas, da Fepasa ou do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) para saber da situação do complexo ou questionar o uso pela família.
Segundo a SPU (Secretaria de Patrimônio da União), ligada ao Ministério do Planejamento, a estação está inserida em área operacional do Dnit.
RENDA
Furtado chegou a ter 300 galinhas, mas disse ter perdido muitas no período em que ficou sem caseiro. Uma das dificuldades, segundo ele, é encontrar quem se submeta a viver num local sem luz e com raro sinal de telefonia celular.
A falta de energia elétrica o obriga a comprar sacos de gelo em Serrana, cidade vizinha, para manter bebidas e alimentos em temperatura ideal. Um gerador a diesel, que consome um litro do combustível a cada três horas, é ligado diariamente das 18h às 21h.
No local, o síndico plantou árvores frutíferas, tem uma horta, cria galinhas e comercializa ovos. Vende cada galinha caipira por R$ 30.
Além de consumir o que produz, também se alimenta de animais comuns na região, como um lagarto teiú –o couro de um deles, de cerca de um metro, está exposto na área externa da casa.
“Não quero ficar rico aqui, mas pagando o que gasto já está ótimo. Falo para minha mãe que quero morar no mato. A escola pega as crianças na porta da estação e penso em ficar aqui. Tipo síndico, fico tomando conta.”